junho 27, 2009

Mulheres - América Latina: Novas leis contra genocídio silencioso

Assunção, 18/05/2009 – O "genocídio silencioso" de mulheres na América Latina pela violência machista exige leis que incluam a comunidade e o Estado como agressores, disse à IPS Susana Chiarotti, coordenadora do Comitê de Especialistas de Acompanhamento da chamada Convenção de Belém do Pará. A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, aprovada na capital paraense em 1994 pelos 34 membros da Organização de Estados Americanos (OEA), tipifica toda violência de gênero como um abuso aos direitos humanos e obriga a adoção de uma série de medidas para sua erradicação.

Chiarotti, advogada Argentina e ativista histórica do movimento feminista regional, também é coordenadora do não-governamental Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem,) que é parte da OEA, mas atua com independência e atua em 17 países. Durante sua visita a Assunção, falou à IPS sobre os avanços obtidos nos últimos anos e o muito que resta a fazer para eliminar a violência contra a mulher em todos os âmbitos das sociedades latino-americanas.

IPS - Quanto a América Latina avançou na erradicação da violência contra a mulher desde que existe a Convenção?

SC - Se compararmos com 30 anos atrás, o avanço é gigantesco. Ter uma Convenção, ter um mecanismo de acompanhamento, começar a ter leis integrais de violência de gênero, leis de violência familiar, já é alguma coisa. Se olharmos por esta perspectiva o êxito é importantíssimo, porque as mudanças culturais são muito lentas e nós mulheres, em 30 anos, conseguimos muitíssimo. Mas, agora temos de passar à segunda geração de leis de violência que incluam todas as áreas. Também temos de introduzir outras matérias nas faculdades de direito que se enquadrem melhor à situação atual. Isso permitirá ter ferramentas eficazes e gente formada e sensível, para não reagirem como trogloditas, como ainda fazem em muitos espaços.

IPS - A Convenção é vista principalmente como um instrumento contra a violência física, psicológica e sexual contra a mulher na família ou no casal. Mas, quais são realmente seus alcances?

SC - A Convenção diz que os Estados estão obrigados a prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher na esfera doméstica e estatal. Então, ao assinar este documento em Belém do Pará os Estados ficaram obrigados a cumprir essas outras duas áreas. Quando o Comitê começou a trabalhar tínhamos de analisar a violência contra a mulher com todos os governos e identificar entre uma enorme diversidade os problemas comuns.

Encontramos quatro âmbitos: contexto jurídico, acesso à justiça, orçamento e estatísticas. Encontramos também que a maioria dos países elaborou leis que somente cobriam a área domestica e não contavam com leis integrais que somassem a comunidade e o Estado, como manda a Convenção. Assim, há uma dívida nas leis quanto à proteção que dão às mulheres. Um dos poucos países que fez uma lei integral é o Brasil. A maioria das nações possuía leis neutras, referentes apenas à violência familiar e que deixavam desamparadas outras áreas.

IPS - O que entende por violência contra a mulher nas esferas comunitária e estatal?

SC - A violência na comunidade é muito importante porque ali está a violência mediática, produzida pelos meios de comunicação quando reproduzem estereótipos discriminatórios. A violência através da publicidade, por exemplo. Há um caso muito ilustrativo, da Volkswagen no Brasil. Uma de suas concessionárias no Rio Grande do Norte, que também fazia reparos em carros envolvidos em acidentes, divulgou uma publicidade que mostrava o rosto de uma mulher que havia apanhado acompanhado da frase "Venha que a consertaremos".

Quando a Associação de Direitos Humanos do Rio Grande do Norte e a Cladem reclamaram junto à concessionária, um jornalista local disse: "Essas feministas, que devem usar trajes acres e bigodes e não conhecem a glória de Deus, não apreciam o que é a criatividade, não têm senso de humor". A VW no Brasil não considerou o caso e as organizações recorreram à Matriz na Alemanha, que imediatamente cortou o contrato com a concessionária e financiou seminários com publicitários para que não fizessem publicidade sexista e não promovesse a violência contra a mulher. É a isto que me refiro quando falo de violência midiática. Nos deixam sem ferramentas.

E pelo lado da violência do Estado, temos de recordar que em nossos países a democracia está em construção, pois vimos de ditaduras que deixaram o selo do autoritarismo em muitas instituições como família, escola, hospitais, prisões, onde a ordem ou a disciplina se confunde com autoritarismo. É preciso trabalhar para erradicar isso. E, por exemplo, deve-se trabalhar com a violência obstétrica, dispensada às mulheres que vão aos hospitais para dar à luz ou pedir assessoramento em saúde sexual e reprodutiva.

IPS - Na região, agora há leis melhores e mais duras, mas os números dos crimes machistas se mantém muito alarmantes. O que falta para superar esta situação?

SC - O femicídio tem de ser enfocado em muitas áreas, de acordo com os órgãos de segurança, os meios de comunicação e estudos psicológicos. Não necessariamente precisa de uma figura especial no Código Penal. Alguns países já o incorporam, com Costa Rica e Guatemala, mas outros podem avançar na prevenção do femicídio deixando de promover a violência contra as mulheres, não desculpá-la usando desculpas como emoção violenta ou homicídio por honra e muitas outras. Assim se pode ir tomando medidas para prevenir os femicídios.

IPS - O quanto é necessário o crime de gênero ter sua própria contabilidade?

SC - Isso é muito novo e muito útil. Esses observatórios que estamos fazendo em toda a região para contar quantas mulheres morrem por violência de gênero mostram à sociedade um espelho. Antes não se contava, ficavam como crimes passionais e se perdiam no tempo. Agora, começam a ser contados e poderemos provar que estamos praticamente diante de um genocídio, e, além do mais, oculto. Se fosse morta a mesma quantidade de pessoas por serem de uma etnia ou um grupo especial, por serem negros, judeus ou indígenas, as pessoas reagiriam de outra maneira. Mas, são mulheres, e a sensibilidade, infelizmente, diminui.

IPS - Os poderes públicos, os políticos e em particular os governos, fazem sua parte?

SC - Os governos aparecem como politicamente corretos, a maioria procura se mostrar sensibilizado. Não sei quanto do que dizem pela boca têm no coração. Seguramente, temos de esperar um tempo até termos funcionários mais comprometidos, conscientes e preocupados de verdade. Será quando teremos políticas sérias, compartilhadas e com orçamentos.

IPS - E as mulheres, as vítimas da cultura machista tão arraigada na região, com enfrentam o problema?

SC - Estamos cada vez mais firmes e suportamos menos o machismo. Estamos menos dispostas a sermos cúmplices e somos mais solidárias entre nós, embora haja exceções. Também temos mais modelos para mostrarmos às nossas filhas e netas, modelos de mulheres líderes, fortes. Há 30 anos praticamente não havia mulheres nos meios de comunicação, presidentes, legisladoras. Hoje nos refletimos em outros modelos, estamos criando nossa própria genealogia. Quando só homens falam, citam uma genealogia masculina. E agora nós estamos avaliando e citando as nossas. IPS/Envolverde

Por Natalia Ruiz Díaz, da IPS


(Envolverde/IPS)